31/10/2005

Crônica Aleatória: "Na Ponta da Faca"

- Você está certa que é esse aí?
- HuM-hUm, - respondeu a garota de cabelos multi-coloridos - EsSe MeSmO.

Sonho não costumava confiar no juízo inexistente de sua irmã, mas aparentemente havia algo que Delírio conseguia enxergar naquele homem, que mesmo aos olhos do grande Lorde Morpheus era completamente invisível. A aparência era de um jovem adulto, com seus vinte e poucos anos de idade, mas o corpo jazia inerte no chão frio da sala escura. Em seu braço esquerdo havia um cordão de tênis semi-amarrado, e uma seringa vazia pendia de sua mão direita. Tinha todos os sinais de uma pessoa com a mente presa ao Sonhar, mas ao mesmo tempo o cheio de podridão que predominava no recinto indicava que sua irmã Morte já deveria ter buscado o rapaz há alguns dias.

- Você não poderia estar mantendo este mortal vivo. Este poder não te pertence.
- E eU nÃo EsToU, sOnHo! PaReCe QuE eLe FeZ iSsO sOzInHo...

O imponente Lorde ajoelhou-se ao lado do corpo, e pousando uma das suas mãos tentou perscrutar a mente do rapaz, mas não conseguiu ver nada. A frustração deixou marcas visíveis de cólera no rosto de Sonho. Aparentemente, a mente deste jovem conseguira de alguma forma invadir seu reino, o Sonhar. Estava obviamente protegido com poderes de Delírio, mas ela não era capaz de entender como isso teria acontecido, debaixo do seu nariz.

- Vamos resolver isso no Sonhar. Venha - e na fração de tempo que um átomo de hidrogênio parte-se no coração de uma estrela, ambos se viram caminhando num deserto de areia fina e branca, que ao longe tornava-se vermelha como sangue. A areia rubra formava um círculo em torno de um ponto luminoso, que brilhava com uma miríade de cores sem fim, e numa velocidade que seria capaz de erguer mil ciclones.

- Aquele é o centro de todo o problema, Irmã. A mente do mortal está presa ao Sonhar, e corrompendo a areia de sonhos da qual o meu reino é composto. Se isso continuar, tudo será destruído, você entende?
- mAs Eu NãO fIz NaDa, SoNhO! ElE vEiO aQuI sOzInHo, NãO o AjUdEi.
- Entretanto, apenas você tem o poder de desfazer sua presença no meu reino. Por favor, vá lá e descubra o que está acontecendo.

Choramingando e tremendo de medo, lentamente Delírio se aproximou do centro brilhante, até desaparecer em meio à intensa luminosidade. Instantes depois, a luz morreu, e com ela a areia gradualmente voltou a ser branca. Delírio retornou com um pesado elmo de desenho ancestral em suas mãos, o que deixou Lorde Morpheus extremamente alarmado.

- Meu símbolo. O que foi que você fez, Irmã?
- eU sAbIa QuE tInHa DeIxAdO eLe Em AlGuM lUgAr.
- Você ajudou aquele mortal a usar meu símbolo?
- EuUuUu? NãO, cLaRo QuE nÃo, NeM eM "sOnHoS" - a piadinha teria feito Delírio gargalhar sozinha, mas o rosto sisudo do irmão mais velho dizia-lhe que era melhor comportar-se agora.
- Quando foi a última vez que você se lembra se estar com o elmo?
- fOi AnTeS dO bArNaBáS mE tIrAr DaQuElE lUgAr EsTrAnHo E eScUrO oNdE eU qUaSe EnDoIdEi.
- Já imagino o que deve ter acontecido. Volte para o lugar onde o rapaz se encontrava... Morte gostaria de ouvir algumas explicações sobre o que aconteceu. E ele estava sob sua responsabilidade, de uma forma ou de outra.
- Tá BoM... e VoCê, VaI aOnDe?
- Fazer uma visita.

***

Uma solitária figura andrógina caminhava calmamente em sua sala. Entediada, buscava algo que fosse capaz de satisfazer sua sede e esmorecer seu tédio.

- Satisfeito consigo mesmo, Irmão-Irmã?
- Ora ora, se não é Sonho?! Achei que você tinha dito que jamais retornaria aqui.
- Não imagine que sinto prazer em voltar ao Limite.
- Então não é apenas uma visita social?
- Você sabe porque estou aqui, Desejo.
- Ah, aquele pequeno embuste? Não foi uma pândega?
- Já te avisei para ficar longe dos meus negócios.
- Ora, seu senso de humor nunca foi dos melhores. Além diss...
- Chega. Acabou. Você está para sempre banido do meu reino, e sua influência sobre os meus está terminantemente encerrada.
- Você não pode fazer isso!
- Assim como você não podia permitir que um mortal usasse um dos símbolos.
- Ele apenas queria viver! Seu desejo era viver para sempre, e eu apenas entreguei as ferramentas, Irmão...
- Sob o risco de se meter nos assuntos da Morte e de destruir o Sonhar.
- Você não pode me banir dos sonhos dos mortais. Eles vivem, são carne, portanto sentem desejo!
- Desta forma você ficará mais fraco, e não poderá continuar com suas maliciosas tramóias, certo?
- Sonho, você não fará isso. Sonho, não vá embora!

O orgulhoso Lorde Onírico retornou para seu reino, onde pessoalmente encarcerou todos os sonhos que foram construídos com a chama do Desejo. Deste momento em diante, a humanidade perdeu uma boa parte do romantismo e calor que sempre alimentaram seu espírito inconscientemente, mas por mais alto que fosse o preço a se pagar, ele era absolutamente necessário. Posted by Picasa

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