13/07/2021

Crônica Aleatória: "Lua"

Fiquei sabendo que hoje é o "Dia da Maldade".

Não sei se a informação é verdadeira, fidedigna, mas em homenagem a esta data que provavelmente é falsa ou algum meme inventado por zoomers entediados no Twitter, coloco aqui este conto que faz parte da minha coletânea "Crônicas Aleatórias", disponível para compra em formato Kindle no site da Amazon.

Se você estiver lendo isto aqui, espero que goste desta breve "maldade".


O sinal da fábrica soou novamente o apito, indicando que todos os funcionários e operários deveriam retornar aos seus postos de trabalho e retomar as atividades cotidianas. "Excelência com responsabilidade" era o lema que o Presidente usava e fazia questão que o mesmo estivesse afixado em cada quadro de avisos, com garrafais letras azuis. O jovem jornalista estava bastante nervosa, pois imaginou que o bem sucedido executivo faria a entrevista sentado no conforto da cadeira classe presidencial de seu escritório, mas se enganou redondamente. Ele fez questão de conversar com a bela mulher de longo cabelo castanho solto e penas compridas, vestindo um tailleur cinza e salto alto enquanto ambos passeavam pelas instalações a pleno funcionamento. Na verdade, isto o divertia.

"Eu não mordo, senhorita. Pode começar a inquisição, estou à sua disposição," disse o presidente da fábrica. Com as mãos quase tremendo, ela tirou um par de óculos da bolsa junto com seu gravador, o qual foi imediatamente ligado com um clique quase inaudível.

"Boa tarde, senhor Mau. Sua carreira como empreendedor do ramo alimentício é fascinante, mas não tanto como suas raízes. Você poderia falar um pouco sobre o início da sua vida e as dificuldades que enfrentou?"

"Claro. Eu tive uma infância bastante comum, com meus irmãos e irmãs de ninhada. Mais velhos, formamos uma matilha formidável, mas eu sempre quis algo mais," ele parou para pensar por alguns instantes. "Eu queria individualidade. Queria ser diferente. Não achava que aquela vida de caçar, comer e dormir na floresta era exatamente para mim."

"Mas os seus anseios não seriam contra a natureza dos lobos, senhor Mau?" perguntou a agora mais relaxada jornalista. O entrevistado ergueu uma sobrancelha e com um olhar mais astuto do que feroz rebateu a perguntar com uma voz tão estável que parecia sibilar.

"Sim, isto poderia ser verdade. Mas tudo aquilo que construí na vida é condizente com a natureza lupina. Veja bem: formei uma matilha, que é a minha fábrica. Virei o alfa, pois sou o líder de todos. Ajudo a providenciar alimentos para todos aqueles que protejo, assim como abrigo no inverno e boas possibilidades de acasalamento. É simplesmente incrível o que se pode fazer com dinheiro hoje em dia."

A entrevista parecia começar a melhorar, então a jovem rapidamente fez aparecer um bloco de anotações, o qual segurou com a mão esquerda junto do gravador, enquanto sua mão direita já rabiscava ideias no papel com uma caneta que simplesmente parecia ter sido feita sob encomenda para seus dedos. Ao mesmo tempo em que escrevia, modulou sua voz com um tom de respeito e curiosidade: "qual foi sua primeira experiência profissional?"

"Ah, foi há muito tempo atrás. A primeira tentativa verdadeira, devo admitir, foi com a Chapeuzinho. O encontro na floresta foi completamente aleatório e fortuito, mas logo vi que havia uma chance de crescimento ali."

"Você está dizendo que devorar uma criança inocente por acaso pode ser uma chance de crescimento?"

"Não, claro que não. Veja bem, esta é a história que todo mundo conhece e que compõe o imaginário comum. A verdade que nunca foi divulgada é que a avó da Chapeuzinho era uma grande empreendedora do ramo alimentício, especialmente no tocante a doces e chocolates. Quando vi a jovem menina indo para a casa da avó, percebi uma oportunidade de ingressar na indústria, então ofereci meus serviços."

"E ela recusou, não foi? Teve medo de você?"

"Na verdade, o pai da Chapeuzinho a instruiu para não confiar em estranhos, pois sempre tinha alguém de olho nas receitas secretas da Vovozinha. Ela era uma boa menina, obediente, então juntei toda a minha coragem e fui direto para a casa da empresária."

A jornalista lançou um olhar decisivo para o seu entrevistado. "Então você devorou a vovozinha para roubar suas receitas secretas?"

"Mais uma vez, não. Eu devorei a Vovozinha, mas tente entender. Ela ainda era uma mulher charmosa e atraente, eu era um jovem inocente e bastante disposto, logo..."

"Não precisamos entrar em detalhes, Sr. Mau."

"Continuando, tínhamos um acordo. Todos ficaram chocados devido à nossa diferença de idade, mas eu não me importava. Continuei com ela até o fim, mesmo com todas aquelas mentiras inventadas pelas pessoas, especialmente por aqueles caçadores desocupados."

"Os caçadores invejavam o seu sucesso?"

"Na verdade eles invejavam o meu relacionamento com a Vovozinha. Todos a desejavam, secretamente." A jovem jornalista sentiu que o empresário lançou um olhar na sua direção, como um lobo faminto que elegantemente não fitava diretamente suas belas pernas. Ela pensou que ele devia ser um viúvo bastante requisitado, mas preferiu não se desviar do assunto, a entrevista.

"Bem, isto encerra a história com a Chapeuzinho. Mas e quanto aos Três Porquinhos? Como você justifica duas acusações de destruição de propriedade, uma tentativa de invasão e três tentativas de assassinato?"

"Antes de tudo, gostaria de reafirmar que nunca uma queixa foi aberta na polícia. Sabe o motivo? Quem a abrisse seria processado por perjúrio, pois as acusações são complemente falsas."

"Ainda assim as pessoas comentam o assunto há anos, Sr. Mau."

"Comentam, falam, sussurram, cochicham. Fofocam. É tudo fofoca, boataria maldosa. Quer saber a verdade? Eu tenho provas. Isso foi bem no início da minha fábrica de alimentos, eu tinha uma equipe com poucos membros, então cuidava pessoalmente das vendas externas e cobranças também."

"Você insinua que os porquinhos te deviam dinheiro?"

"Insinuar, não. Eu afirmo. Tenho provas, notas fiscais da época, assinadas por eles, porém sem pagamento. Eventualmente todas as dívidas foram executadas por uma empresa de cobranças, mas antes de tomar uma medida tão drástica tentei resolver o assunto pacificamente. Fui conversar com o mais preguiçoso dos três irmãos, o Cícero, que então se escondeu na casa do Heitor e quando pude perceber estavam todos na casa do Prático. Foi um inferno conseguir falar com eles, mas os caloteiros estavam dispostos a não pagar meu dinheiro."

"Mas por quais motivos teriam eles tentado difamar sua reputação, espalhando supostas mentiras e alegando a tentativa de agressão sofrida?"

"Simples, minha bela jovem. Os três porquinhos nunca quiseram que eu revelasse exatamente o que eles compraram comigo. Eles sabem que virariam párias se as pessoas soubessem a verdade, mas agora eu não me importo mais com isso."

"Mas Sr. Mau, o que poderia ser tão terrív..."

"Bacon, senhorita" interrompeu o empresário com uma ferocidade controlada na voz. "Naquela época minha fábrica produzia vários derivados de suínos, mas principalmente bacon."

"Bacon, mas como..."

"Em tiras e em cubinhos."

"Quer dizer que os três porquinhos... Eles eram canib..."

"Não precisamos entrar em detalhes, mas você entendeu meu ponto. O que eu gostaria de afirmar é que a Maulimentos Ltda. é uma indústria em constante crescimento e não me importo mais com essas inimizades e problemas do passado. Tudo o que recebi de bom e de ruim na minha vida me trouxe até o lugar no qual me encontro agora. Sou um lobo feliz, não posso reclamar."

"Acho que já tenho bastante material para a entrevista, Sr. Mau. Podemos encerrar por aqui, sei que o senhor é bastante ocupado."

Ele olhou mais uma vez para a jornalista com luxúria nos olhos, percorrendo seu corpo dos pés à cabeça. "Sim, sou bastante ocupado, mas sempre tenho um tempo extra para beber um drink no bar do meu bom amigo Rumpelstiltskin. Especialmente com uma boa companhia como você."

A jovem imediatamente ficou enrubescida. "Sr. Mau, você disse que não mordia."

"Ah, mas na lua cheia tudo pode acontecer."

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